Venho aqui e vou embora, trazida por uma inspiração soluçada. Leio, trabalho, dirijo, converso e pronto: apareço, escrevo umas linhas. Apareça também, sempre, quando em vez, assim como eu. E seja bem-vindo.

segunda-feira, setembro 07, 2009

O Beco em Dias de Sábado

Manhã


Sábado: o pior e o melhor dia para estar no Beco da Poeira. Pior para os clientes, melhor para os comerciantes. Apesar do calor, da sede e do completo desconforto, milhares de trabalhadores elegem a manhã de sábado para ir às compras, promovendo-se de vendedores a consumidores, ao menos uma vez por semana.


Hoje, o Beco está especialmente cheio: é véspera de Dia dos Pais. As modinhas femininas, campeãs de vendas, dão lugar a calçados, cintos, bonés e blusas de time. A mãe de família leva os filhos e a irmã, juntos escolhem lembranças para os pais e maridos. Os irmãos maiores repuxam bermudas, cuecas, calções de banho, sapatos e a camisa da mãe: não necessariamente nesta mesma ordem. O filho pequeno sacode-se impaciente nos braços da mulher, quer participar da brincadeira.




A família escolhe lembranças

Mas a mãe, meninos – negra, rija, roupas simples e cabelos mais enrolados que alisados – apesar de mal cuidá-los por que trabalha de sol a sol, não tem dinheiro pra levar tantas coisas. E nem eu nem ela sabemos se o que a irrita é realmente a danação dos filhos ou o constrangimento de só poder levar lembranças: presentes são regalias do natal, em doze vezes no cartão, quando a última parcela da geladeira acabar.


Sacudo uns shorts, confiro as costuras e o vendedor me aborda. Seu Walmir, senhor de idade, cabelos (poucos) e bigode brancos, retira do estoque dezenas de camisas sociais, das quais conta vantagem: até o fim do dia – certamente - estarão vendidas. O veterano é mais um ambulante proveniente da praça dos Leões, onde, segundo ele, foi feito o primeiro cadastro para a transferência oficial dos camelôs ao Centro Comercial de Pequenos Negócios Ambulantes, na gestão de Juraci Magalhães.  Pergunto-lhe das expectativas com a mudança iminente e sua resposta reflete o pensamento de muitos dos permissionários mais velhos, partícipes de ambas as circunstâncias: a vida ambulante e a de cadastrado.


“Minha filha, eu penso que o certo é ir pro espaço que eu paguei, por que eu paguei, não é? Mas pra onde o vento pender eu vou.”


Dona Josefa – Zefinha –, funcionária de Seu Walmir, também veio da praça dos Leões. O marido vendia calçados na praça, cadastrou-se e teve direito a um box. Há doze anos trabalha no Beco, já foi patroa, hoje é empregada. Chegou a adquirir dois boxes com o marido, mas a demora com a entrega do espaço foi tamanha que largaram o sonho do patronato: repassaram os papéis e seguiram como funcionários.


Na casa de Zefinha, o Dia dos Pais será de saudade. O marido mudou-se para São Paulo, arrumou um emprego de carpinteiro, em construção civil. O filho homem logo seguirá o rumo do pai, que planeja mandar-lhe uma passagem: arranjou serviço de pedreiro. “Namoro agora, só por telefone!”, diz ela sorridente triste.


No centro, tudo o mais fervilha. E a cena da mãe se replica a perder de vista: são centenas de mulheres e crianças por todos os lados, lotando lojas de roupas e calçados masculinos, digladiando-se pela camiseta regata da promoção, pelas cuecas samba canção, pelo sandatênis e sapatos Kildare. Mas todas as mulheres destas lojas, que, às 3 da tarde, ocupam um lugar nas purgatórias filas de caixa, com trouxas de roupas numa mão e um filho angélico na outra, ainda que sofram com o calor que não podem abanar, com a fome que não fartaram, com a espera e a falação dos alto-falantes a proclamar milagres em forma de liquidação, todas elas comentam: “mas, graças a Deus, eu não estou no Beco. Imagine o inferno que está lá...”, imaginando que – só lá – mora o inferno mercantil.



Tarde


Às 10 para as 5 da tarde de sábado, o coletivo libera mais meia dúzia de compradores às portas do Beco – se for mesmo possível considerar que o Beco tenha portas. O resto do Centro, há algumas horas, já se preparou para o descanso dominical, mas o Beco e a feira livre da Lagoinha ainda pulsam.


Caminho entre os boxes mais fechados que abertos, a entrevista que marcara para hoje não pôde acontecer, pois o vendedor foi categórico: enquanto houver clientes, se for preciso, “entro pelas 10 da noite”.


Usei o tempo para fazer o que mais se é permitido embaixo dessas tendas: caminhar. A esta hora, a feira lembra uma grande e velha fornalha cansada a qual alimentam insistentemente com todo o tipo de combustível a fim de vê-la queimar até mais não poder. Gatos pingados circulam, certos boxes insistem, outros vão se dando por vencidos, abaixam as portas a meio palmo, abrem as malas, ensacam as camisas, desnudam as modelos encardidas, mas se passo por perto, olhando atenta, reabrem as portas e me oferecem produtos. Sinto-me sempre uma presa aqui dentro: carne fresca na voracidade da lógica mercantil.


No Beco, qualquer conversa é de domínio público, os gritos, avisos e falações têm longas pernas: correm como gente por entre as galerias. Vadiam feito almas penadas, trocando de hospedeiro de boca em boca. Começam em baixíssimos sussurros ao pé do ouvido, ruas depois: explodem em chacotas estridentes. Naquele sábado, caminhou comigo, ao redor de mim, o burburinho de que uma moça fora surrada dentro do Box. Coisas de casal.


Já são quase 6 da tarde, o pôr do sol pinta o céu de boa-noite. Quando os boxes fecham, a estrutura fica mais evidente. A precariedade também. Salvo parte do teto, tudo o mais é velho, sujo e por vezes enferrujado. Os tons de cinza do nanquim tanto cabem nessa paisagem, que mais parecem colorido; a esta hora, foram-se embora os matizes dos tecidos que embaralham os olhos na correria. O rosto dos permissionários exaustos também é gris.


Deixo o Beco dormir seu sono de ressaca e sigo a Guilherme Rocha rumo à Av. do Imperador. Enquanto a velha fornalha se deixa reduzir a cansadas cinzas, na Lagoinha, o relógio não passa. Nem horas, nem dias, e, reparando bem, sequer os anos parecem passar. São dezenas de toldos a postos, catando a clientela que se perde nas fileiras. E a história dos jornais amarelos da hemeroteca emerge diante de mim numa sensação de dejavú do que li, mas não vivi. A Lagoinha de 1987 está pulsando aqui. São outras modas, músicas e gentes, mas como parecem as fotografias em preto e branco do caderno de cidades, reportando: “Camelôs invadem a Lagoinha”! O centro, dos permissionários, lojistas ou ambulantes, revela uma Fortaleza de guerreiros. A “praça dos malandros” é também dos trabalhadores, em suma, é a feira dos sobreviventes. Vou-me embora desejando, silenciosa, “feliz Dia dos Pais” aos homens exaustos que carregam os lombos de sacolas amarelas. Amanhã, talvez, ganhem uma das camisas de botão que vendem na feira.

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