Venho aqui e vou embora, trazida por uma inspiração soluçada. Leio, trabalho, dirijo, converso e pronto: apareço, escrevo umas linhas. Apareça também, sempre, quando em vez, assim como eu. E seja bem-vindo.

segunda-feira, setembro 07, 2009

Rente ao Chão ou A Rua do Por Debaixo dos Panos


São dez horas de uma manhã qualquer. A claridade cega os transeuntes, fazendo-os milhares de toupeiras a se esbarrar na correria trivial da José de Alencar. Homens e mulheres ceguetas recorrem ao Beco em busca de óculos escuros a 10 reais. Apesar do sol, uma rua da grande tenda é escura ainda. Ainda e sempre.


Nela, o chão em falso, de cimento batido, não é mais que um pretume disputado por restos. São eles que dizem onde estou, isso é lei em todo o Beco: em quaisquer ruas, o lixo conversa comigo e me diz dos vendedores e transeuntes, dos produtos vendidos e consumidos, de modo que, se me deitasse rende ao chão, saberia exatamente onde estou.




rua da pirataria - beco da poeira (em Tablet)

Deixe-me, então, fingir prostrar-me nesta rua em que me encontro: os restos de frutas dominam o início do corredor, nos lados da José de Alencar, o cheio forte da podridão adocicada dá a entender que a rua é apenas uma reminiscente das feiras livres que migraram para a tenda. Engano. Após os três primeiros boxes, os bagaços e sementes lentamente dão lugar a peças eletrônicas, lixos do século XX / XXI: molas, parafusos minúsculos, armações e outras miudezas de ferro e aço inox, as pequenas tralhas me dizem dos relojoeiros, são eles agora os donos da rua. Relojoaria resume parcamente o serviço realizado nesses apertos semi-escuros. Dentro do cubículo incrustado de sucatas cibernéticas / eletro-eletrônicas, homens de meia idade alternam, concentrados, as mãos entre a imunda caixa de ferramentas e o notebook instalado entre peças afastadas no empurrão. Dentro desse coral de ferrugens e graxa trabalham os “gênios do faz tudo”. O gênio começou, de fato, como relojoeiro e amolador de alicates e ainda hoje o faz, mas, acompanhando a correria digital, de onde minam não só 3 ou 4 reais de amolação ou troca de bateria, o gênio comprou computador, celular, meia dúzia de aparatos e hoje desseca telefones e mp3, 4, 5, 12; desbloqueia, troca firmware, ensina a comprar direto de Honk Kong sem nota, pirateia chaves de registro, além de tirar (e pôr) vírus.


Encontro-me deitada ainda. Logo as tralhas de ferro passam, o escuro insiste abaixo das lonas laranjas e, do chão, parece fim de tarde. Desvio dos primeiros sacos plásticos quadrados e impressões de pouca tinta, o caco de CD no canto da parede entrega a nova mercadoria da rua, o carro-chefe do corredor: a pirataria de CDs e DVDs. O pirateiro, assim como o faz tudo, sobrevive do desafio diário de burlar a legalidade dispendiosa e financeiramente inacessível. Ele, ao contrário do gênio, é um rapaz ainda, estuda na escola pública à noite, mas ser aluno é sua condição mais coadjuvante. Ele precisa de dinheiro que patrocine: o cigarro, a bebida, o forró, a swingueira e o show dos covers dos Racionais. Ele precisa de dinheiro: que ajude em casa, já que o pai bebe o salário e a mãe está desempregada. Um dos dois também trabalha no box, possivelmente. O rapaz não é dono do ponto. O pirateiro jovem até conhece o esquema, mas o que sabe não abarca completamente a dimensão da máfia. Na real, ele é apenas o menino de recados, menino da jujuba, e sabe disso, já que não é ele que resolve quando o Homem aparece pra tirar o Dele.


Quando o Homem chega, os gerentes dos boxes (que ainda não são os donos) saem das tocas, para baixar as portas ou negociar o “troco”. Os Homens são como cães de rua: com eles se convive, se conversa e até alimenta, mas não se deve esperar demais, eles sempre podem mordê-lo.


Naquele dia de toupeiras, pernas avexadas chutaram o lixo do chão numa correria. Os gerentes saíram das tocas pra fechar as portas, delegando aos pirateiros que escondessem as caixas. O barulho de ferro desenrolado e cadeados sacudidos tomou conta da noite embaixo da lona laranja. Na contra mão, corro eu, procurando o epicentro. As almas penadas passeiam em cochichos: são as falações correndo pela rua estreita, desvio de suas grandes pernas. O disse-me-disse me contou que os Homens chegaram pela entrada da José de Alencar e, por isso, os boxes da Tristão Gonçalves estão baixando as portas. Caminho de ouvidos em pé. Pelo meio do corredor, a falação falou em alarme falso e o burburinho virou anúncio, gritado de esquina em esquina:


- Alarme falso, negrada! Tem Hômi, não!


Novamente, portas de ferro enrolaram-se acima dos boxes, cadeados libertam as prateleiras, milheiros de CDs e DVDs. Como diria O Rappa, “foi selada a falsa calmaria”.


O motivo da desconfiança aparece pouco depois: um Homem só, em farda cor de caqui. A boina escura vinha presa no cós da calça, ao lado do 38. Passeou de box em box conversando amigavelmente, enquanto comia dois ou três DVDs por banca, entocados no uniforme, o botão da camisa estrategicamente aberto. Puxava assunto, mostrava o celular e sorria, os curiosos se achegavam. No aparelho, fotografias feitas no camburão:


“Eram de um cara que pegaram no Fortal, o cara morreu com uma faca na cabeça!”, contou-me o pirateiro. Desconfiado, disse-me sem que eu perguntasse: “É meu tio, ele”, referindo-se ao Homem.


Os Homens são muitos e de muitas fardas: caquis, verdes, azuis e pretas. Elas, na verdade, são o que diferem os pirateiros e gerentes dos Homens. Não fosse o uniforme, muitos deles se igualariam no desafio de burlar a legalidade. O Homem, o Polícia, o Rapa, o Fiscal são todos a mesma personagem, mas nem toda autoridade é Homem. Os Homens são um tipo de autoridade de descontrole social, sem a qual o esquema da ilegalidade não teria tanto êxito. Dos Homens dependem a pirataria, o tráfico, o contrabando. Os Homens são alguns dos que dão vida à ilegalidade institucionalizada e ajudam a desenvolver e incorporar cotidianamente o conceito de “jeitinho brasileiro”, que se reinventa a cada novo objeto de desejo “de marca”, que um assalariado não compraria sem crediário. Enquanto isso, as barracas de frutas nos primeiros boxes mascaram a escuridão dos terceiros, e o cheio forte de suas frutas pisadas confunde outros odores, de algo que não cheira bem.



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