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terça-feira, abril 27, 2010

Uma tragédia anunciada, mas não ensaiada - considerações muito pessoais

Mais um ensaio sobre o Beco, escrito dias depois do acontecido. Antes do post anterior. Mais ácido e irônico, mais pessoal e talvez inconsequente. Tem horas que a gente só precisa pôr pra fora. 

Era ensaio, e era valendo. O dragão despertou e, àquela primeira semana do mês de abril, fez o que há muito prometera: com fogo nas narinas, reuniu a cavalaria, tapou a vila de tapumes e mandou brasa. Ninguém entra, todo mundo sai. E acabou-se o que era Beco.

Melhor contar a história com um tanto mais de lucidez, antes que seja má interpretada. É preciso desdizer o gostinho de truculência e de unilateralidade deixado pelo parágrafo anterior. Houve sim o uso da autoridade, distante alguns metros do conceito de autoritarismo.

Ocorre que a ordem de despejo, que mais parecia com um gentil pedido-implorado para que educadamente se retirassem, já estava mais que vencida. Fedia na cova. E, enquanto escrevo, pensando cá se não estou fugindo à razão, recordo vivamente a fala de dona Gorete, vendedora do Beco desde a fundação, dizendo-me que quando foram para lá, há 18 anos, já havia o projeto do Metrofor, "a gente já sabia que ia ter que sair de lá". Duas décadas de aviso, diz pra mim se o defunto não estava podre?


Não entrarei cá no mérito da estratégia policial empregada na retirada dos ambulantes. Aliás, até vou, porque, de fato, nada justifica cabra de farda saquear boxe, mandar sair é uma coisa, roubar é outra. Isso passa longe de manutenção da ordem e os bonitos deviam mesmo ir pro chilindró. Mas sou jornalista, não advogada (se o fosse, obviamente que até este excerto não sairia de graça). Sei apenas que ninguém pode dar com a língua nos dentes dizendo não saber que isso um dia ocorreria.

Mas a violência em si, o tumulto, os saques, os prejuízos, poderiam ter sido evitados? A revolta inerente ao ato de despejo, não. Mas a confusão, talvez. Duvido muito, porém, que isso fosse possível através do modo como as discussões se encaminhavam. Uma negociação em que falta equilíbrio, informação, flexibilidade e até vergonha na cara mesmo gera isso a que presenciamos: ações bruscas, indesejadas por ambas as partes, tenho certeza.

Faltou consenso. Consentir deve vir de "sentir com", compartilhar um sentimento, neste caso uma leitura de mundo ou de uma circunstância sobre algo ou alguém. O problema do consenso veio na boleia do maldito ditado "quem cala, cosente". O dito popular outorgou que, a partir de sua criação, ficava vetado o direito de calar-se, pois quem é o besta que vai consentir? Negócio é esse... Consentir era para os covardes. Pronto, banalizou-se o verbo.

Mas o consenso, meus caros, é uma das armas mais poderosas da sociedade, talvez justamente por ser um dos pilares de fundação dela ( afinal, o que é sociedade sem o coletivo?) e, ao mesmo tempo, uma sua ferramenta de derrocada. Em consenso, constrói-se e destrói-se um mundo. E nossa política imunda, não é feita de consenso? Mas a equidade, a justiça e a solidariedade também não são possíveis através dele? Ô verbetezinho... Será ele sempre responsável por uma decisão difícil.

Associados, em consenso, somos mais fortes. De fato. Só que o bom discurso, como este, é aquele que, mesmo beneficiando a poucos, faz sentido para muitos. Na união, se estabelece a crise de representatividade. Não vou me ater a detalhes, tente apenas imaginar-se na pele de um permissionário sob essa perspectiva: dividido entre o braço forte e protetor de uma associação e de uma prefeitura, ambos dizendo representá-lo, ambos por ele eleitos, ambos proclamando: juntos somos mais fortes. E agora, José?

Crise de representatividade é um bom nome. Faltam informações, sobram interesses. Estes, estão saindo pelo ladrão, como dizem no interior. Pense comigo, sem entrar no mérito da decisão propriamente - esse não é o ponto, e se tivessem entrado em um consenso, e se tivesse havido uma retirada pacífica? Quem ganharia com isso? Muitos, creio, mas não todos. Papel e caneta na mão, que a lista é grande: quem saia perdendo? Políticos em pleno período eleitoral, nada mau um curral de 2050 boxes, confusão já armada, basta aparecer de super-herói. Imprensa, sim, porque por mais chato e terrível que seja isto, o Beco em colapso notícia e é isso que põe comida em nossas mesas, e quanto maior a confusão, mais matéria, é ou não? Os curiosos que adoram um bafafá quando não é com eles; o programa policialesco; o político do programa policialesco; as associações defensoras de sabe-se lá o quê... esses todos perderiam.

Quer saber, seria trágico mesmo. Boa sorte pra quem foi, pra quem ficou e pra quem vai gerenciar a panela de pressão. Mas mais sorte ainda pra quem comprou box e não recebeu, porque aí sim o consenso e a união dessas pessoas vai fazer a diferença em busca de algo necessário, uma coisa pela qual sempre valerá a pena lutar: justiça. 

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