Venho aqui e vou embora, trazida por uma inspiração soluçada. Leio, trabalho, dirijo, converso e pronto: apareço, escrevo umas linhas. Apareça também, sempre, quando em vez, assim como eu. E seja bem-vindo.

sábado, setembro 26, 2009

O místico no ponto de ônibus

Havia um homem sentado no muro. O escuro caíra há um quase nada e o arredor do Benfica ia empapado de gentes. A chusma que sempre se forma às seis da tarde, progresso do burburinho que começava às cinco e agora já é latente desde as quatro, estava presente, sacudindo-se em busca de um transporte, pescoços de girafa alongado a mais não poder sobre as cabeças uns dos outros, enxergando parangabas, mucuripes e Joões Pessoas. Cinco da tarde, nesses tempos de buracos tapados com poeira e carros enormes lotados de uma só pessoa, já é hora maldita de raiva e impaciência. De ônibus e motoristas tão dormentes que, por isto mesmo, renegam a impaciência dos passageiros: mudam a rota, passam direto. Na aglutinança de suor, exaustão e olhos no relógio, o homem simplesmente estava sentado no muro.



Ele experimentava a suspensão do mundo. Suspenso no passado presente em cada passo do ponteiro, ali, em cima do muro, ele reparava a massa de transeuntes e os discriminava numa discriminação positiva. Ele os compreendia únicos e conhecia seus caminhos. Do muro, ele sabia dos ônibus que aguardavam e da ânsia do aguardo, das conversas ao telefone, do ponto do churrasco, passado já; o homem mergulhava no mistério da avó agarrada ao braço débil da neta ainda menina, uma arrastando a outra carinhosamente; imergia no carinho dos namorados, no desespero do fiscal de trânsito, no desleixo da cobradora apaixonada, aérea à balburdia; o homem sabia dos desvios, dos acasos, e aprendia com a vida. O muro e a suspensão desinteressada do homem deram-lhe, aos meus olhos ao menos, a condição de místico.


Havia outras pessoas no muro, outros tantos, mulheres e homens e casais de namorados, motivados a sentar-se pelo exemplo do homem, mas não eram místicos, por que olhavam relógios, rebusnavam e se debatiam, atentavam para mucuripes e Joões pessoas. Mas o homem, ele não. Esteve quieto, deitando sobre os outros olhos de caridade, feito um santo, um sábio. Sem caridade ele jamais o seria. O místico experimentava sensivelmente um contato único e nada convencional naquele espaço: a escuta. Do muro, escutava a vida instável auto-organizar-se, e sacudir-se e articular-se como um grande formigueiro. E não era a natureza que estava ali pulsando diante do homem? Ou aquele auscutamento não era poético por que não se tratava de plantas e animais e serezinhos? Do pouco que sei, assim não considero, já que “o místico não se dissocia do sentido agudo das realidades sociais”. O homem no muro era o próprio místico a compartilhar da terra pela ouças e olhos, a dividir-se com “o universo de energias, constituído por um tecido de relações”.


Na redundante seis da tarde, na empapança de suores que re-significava Entropia, não só o místico, porém, representava as capacidades do espírito. A despeito daqueles modos de anarquia, a multidão que se engalfinhava à caça dos coletivos produzia uma organização outra, e, da interação, gerava uma sua sinfonia própria. Fazia música inaudível aos ouvidos impacientes. Se reparada pelas vias do homem no muro, a multidão também era repleta de espiritualidade, pois consistia de gentes singulares, cada qual com sua cota de mistério, de espírito, com sua energia emanada tal qual uma nota musical, tocada brava ou brandamente. Às seis da tarde, o concerto ouvido pelo místico do muro não devia provir dos chineses. Devia ser Bach, com seus tensos semitons, que, afinal, também não produzem melodias coerentes e, por que não, harmônicas? A sinfonia da chusma era tensa, porém harmônica na sua dinâmica. Era Bach.


Mergulho eu mesma na interação da confusão de gentes e também eu corro e me engalfinho para alcançar o corrimão do transporte. É desta dinâmica que participo, não da do místico, também por que esta experiência não ocorre a dois. E quando escrevo, seguindo a lógica de que relato a experiência mística, única e profunda, sinto-me médium. E se o mediador não pode sê-lo sem caridade, ao deixar o Benfica, lanço ao homem no muro sentimentos de compaixão.


Às oito da noite, a “sinfonia secreta” alcança um equilíbrio e a vida corre um tanto mais lenta. Por lá ficou mais dez ou quinze minutos até, também ele, quem sabe, fazer parte da multidão. Mas o homem no muro foi-se embora como nenhum de nós, foi-se feito um santo, um sábio, compreendendo um pouco mais de todos por que escutou o que havia de secreto, de mistério no burburinho e no silêncio.


Sigo meu itinerário acobertada pelo olhar místico que aquele simples trabalhador de meia idade sentado num muro, creio, deitou sobre mim. E espero, na correria dos meus dias, escutar poeticamente sua imagem no muro, sentado, agarrando os joelhos, e quem sabe uma vez, ser mística feito ele.






“O homem desaprendeu, diz ele, sobre o Simples, porque aquilo que é Simples carece de longo tempo para crescer e amadurecer, escondido que está naquilo que não aparece e que se reveste do Mesmo.” Heidegger apud Castro e Dravet.







P.S.: Todas as citações e a maioria dos conceitos da crônica foram extraídos do texto “A escuta poética: mística, poesia e música na Comunicação”, de Gustavo de Castro e Florence Dravet.

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