Venho aqui e vou embora, trazida por uma inspiração soluçada. Leio, trabalho, dirijo, converso e pronto: apareço, escrevo umas linhas. Apareça também, sempre, quando em vez, assim como eu. E seja bem-vindo.

quarta-feira, setembro 23, 2009

O labirinto ambulante no labirinto do tempo

“São quatro ripas do esqueleto. Mais uma na parte de cima pro toldo e duas embaixo pra cama de gato que segura a mesa: outras duas ripas mais grossas juntas com prego. Só no final vêm as sacolas da mercadoria e as bonecas pra servir de mostruário. As tiras de pano seguro calafeta a armação. Hoje usam ferro. Uns cilindros pretos, finos, que se encaixa feito canudo, mas naquela época... Era luxo o ferro. Parecia que demorava a montagem, mas não era. E se era, acabava não sendo: a gente acostuma”.


O Camelô não aprendeu a montar barraca com ninguém. Deve ter visto o pai ou a mãe, ou os dois, amarrando as linhas de madeira, e aprendeu. Disso não há nenhuma memória afetiva: montar barracas não fica, não marca, não é nada de mais. No fim das contas, diz-se que vida foi quem ensinou – quem mesmo, assim como se fosse gente. Foi ela quem ensinou: a montar, amarrar, fazer cama de gato, dobrar roupa, ensacar, vestir boneca, vender, desarmar e correr. Tudo o mais rápido quanto fosse necessário.




Era novo quando começou a seguir o pai na venda ambulante. O produto eram sapatos. Por que? Não havia motivos específicos. As sapatarias ainda resistiam, aquelas “de família”, em que se pode levar o pisante para engraxar ou o tamanco para consertar o salto mesmo depois da compra, aquelas em que se aprontava uma costura no cabresto da alpargata e logo estava novinha em folha, supimpa, grau dez. Resistiam, mas os preços eram altos ainda para quem recebia poucos cruzeiros, cujos zeros davam a impressão de muito dinheiro, mas só impressão. Mesmo o caderninho – precursor do crediário, do boleto, do cartão de crédito – não impediu que os calçados fossem parar nas ruas, vendidos pela metade do preço. O primeiro ponto de venda foi a José de Alencar. O ano era 85, tempo em que a praça era considerada o mais novo mercado concorrente do São Sebastião. O santo e o poeta direto no pau. No comércio ambulante, não há uma eleição específica de lugar. Se o dinheiro não permitia comprar meio metro de terra com o Sebastião, o instinto escolhia o Alencar – e o Conde D’Eu, e a Sé, e os Leões, e a Lagoinha, e.


“Onde tem gente, tem ambulante. Vender pra sobreviver é isso mesmo, ir onde tá o povo, feito a música. Camelô é feito bicho, formiga, piolho. Anda na multidão”.


Na época, a praça era ainda terminal rodoviário. Centenas, milhares de pessoas circulando, para cima e para baixo, vindas de todos os cantos da Grande Fortaleza e reticências. Potenciais consumidores de quaisquer coisas: do chiclete ao utensílio doméstico, do milho cozido ao Cará tratado na hora: e era isso mesmo que se vendia. Na chusma de produtos, ali, beirando o teatro, estavam os calçados. Mas o Menino e o pai nem sempre tiveram tenda. Antes era só uma lona estirada no chão de cimento. O quadrado azul de plástico grosso demarcando as paredes da loja. E o Menino viajava naquela brincadeira imagética.


“Pode entrar, senhora. Escolha aí. Deixe eu abrir a porta pra você, eu dizia. E ia lá fingir que tava abrindo a porta. E o pai brigava que eu tava atrapalhando os clientes. Eu brincava por que não tinha o que fazer, né? Era só gente passando e o sol na cabeça direto, aí era ruim”.


Meninos não faltavam. A praça era cheia deles. Muitas vezes, era a casa, o trabalho, o esconderijo. A maioria vendia bombom ou roubava coisas: o que vender e o que comer. Estavam ali feito o Menino, com o pai ou a mãe ou um tio, e por completo ócio, vagavam. Vagabundeavam. Quando pequenos, era a falta do que fazer, quando maiores, tornava-se o afazer deles, a profissão. O pai do Menino começou a montar barraca por isso, por causa deles. Os pequenos estavam crescendo e o pé de chinela roubado na carreira, de pirraça, ficara para trás. Logo estavam vindo buscar o outro pé. Logo a chinela dava lugar ao sapato social e tão mais logo alguém estirava outra lona de calçados não muito longe dali, vendendo uns sapatos e chinelos muito parecidos com os dele. Na barraca, os pares pareciam mais seguros, além do que, o toldo protegia o couro do mocacim, já ressecado do sol.


Foi por volta daqueles anos que o ônibus pegou uma criança. Pegou vários, crianças ou não. Foi o alarde de que precisavam pra dizer que as barracas da José de Alencar não deixavam espaço para os passageiros, que se arriscavam esperando o transporte nas calçadas estreitas. O Menino, que leu no jornal a notícia, viu que, escrita, a cena nem era tão feia quanto o que tinha visto. Mas fora feio. E pôs fora a pouca comida do almoço, como quando era menor e passava pela parte da praça em que se instalavam os “frigoríficos”. E sentiu as moscas gordas pousarem no corpo do menino feito pousavam nas cabeças de porco estiradas nas tábuas imundas de um vermelho e roxo imundos.


“Foi o que sobrou do menino, só a poça de vermelho mesmo. O ônibus pegou, que o menino foi parar lá embaixo. Aí depois chegaram uns homens lá, levaram embora e pronto. Já tava tudo do mesmo jeito de novo”.



*Este é um trecho do capítulo histórico do futuro livro reportagem de crônicas jornalísticas

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