Venho aqui e vou embora, trazida por uma inspiração soluçada. Leio, trabalho, dirijo, converso e pronto: apareço, escrevo umas linhas. Apareça também, sempre, quando em vez, assim como eu. E seja bem-vindo.

quarta-feira, dezembro 02, 2009

A sombra ou Aquele em que a palavra refundou o homem

Relembrando os tempos de contista, resolvi desenterrar este por que utilizei para resumir um texto de Estética sobre acometimentos, o Belo, o Sublime e a palavra. Caiu-lhe muito bem as reflexões de Eduardo Duarte. Ao longo do conto estão os principais conceitos do artigo, espero que curtam. Antes uma pequena ambientação:

No conto A Sombra, revela-se essencialmente a importância dos sentidos e principalmente da linguagem, da capacidade de comunicação, na construção de identidade dos indivíduos. O cenário é a prisão, o calabouço escuro e fétido, ora abafado ora frio, que, com suas condições subumanas, forja, com os passar dos anos, outros homens e mulheres, desterritorializados de si mesmos, despersonalizados.
Contudo, não são apenas as circunstâncias físicas do cárcere que os moldam dessa forma, mas sobretudo o silêncio, a falta de comunicação. Somente a palavra, a tentativa de diálogo, parece ser capaz de revolucionar os exilados e o ambiente que os cerca, reiterando conceitos do excerto de Duarte, como a língua, os sentidos, os acometimentos, o Belo, o Sublime e as Afecções.








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Um tombo surdo. Bumbo. Do outro lado.

Antes: a unha encarniçada cavoucava o chão. Depois, os dedos imundos do pé voltaram a se contrair como a horas, movimento de alicate, a catar o palito de fósforos imundo do chão idem. Onde estaria ele agora que o fio de sol, que entra por misericórdia pela falha da parede, entardecera? Continuava, entretanto, como se ainda visse. Como se não fosse só breu nos olhos, aqui ali remediado com o fio de sol pela manhã. O fio é seu relógio, dizendo-lhe da noite e do dia. Agarrou alguma coisa: os dedos gordos, pretos, arrastaram, levando às mãos o objeto delgado. Um riso fraco de contentamento. Mas ao querer afastar a poeira do palito num sopro, perdeu-o novamente. Dedos imundos do pé foram outra vez buscá-lo, agora o direito que o esquerdo tinha nós de cãibra. Se houve rancor da perda, quedou em outro lugar, na cara, não. O rosto ia inerte à atividade dos membros, numa apatia de tal ordem que as faces mais pareciam pertencer a outro corpo. As mãos roliças não sustentavam mais, os dedos inchados não sentiam: as veias obstruídas pelo aperto das algemas. Assim, quando lhe punha o palito entre as bolas intumescidas que eram os dedos, não lhe agarrava prontamente, era como dá-lo a um bicho de cascos. Era bicho já. Os braços negros, duas ampulhetas: grossos no antebraço, finos nos pulsos e a grossura da mão inchada novamente. Quando o fio de sol amanhecia, erguia-os antes no limite das correntes, tentar adivinhar que tons traziam seus indicadores.


Um dia, falou: “Roxos... e os... os seus?”

A resposta não veio, mas falou.

Falou.

Há quanto não sabia disso, quanto tempo sem dizer palavra.

Arfara diversas vezes até balir a cor e a cor, a palavra colorida cortara as ataduras que lhe puseram na boca antes de ir à catacumba, era como se lhe tivessem costurado os beiços e a cor – bendita cor, bendita palavra - rompera a imaginária linha imunda, pêlo de animal sebento. “Roxos” libertou num esforço, mas não à toa: ouvira da cela contígua. Assim fora: um balido, depois uma sombra a remexer-se como diante de uma vela acesa, uma silhueta mais escura que a escuridão. Lembro o Mito da Caverna, a distância do conhecimento. Foi como se existisse sol por um instante poder discriminar o outro: sim, alguém estava ali e o fizera pergunta.


Quisera Conversar.
“A linguagem é nossa técnica antropológica de compartilhamento de mundos, de construção de identidades”

“Seus dedos... – arfando, arfando - que cor trazem... s... seus... dedos?” – perguntaram-lhe.

Mas que longa longa frase! Que longo longo discurso identificara. Jamais poderia crer que seria capaz de entender idioma algum agora que os grilhões lhe tinham comido as peles dos pulsos e tornozelos, e que o silêncio, também faminto, comera palavras, todas elas, haviam calado há muito. Revia-se: a palavra era um espelho diante dele, única coisa que lhe diagnosticava não era bicho, pois que entendia e falava. Entendia e falava. A palavra garantia que seu rosto era ainda aquele das boas memórias, que ainda as possuía e a linguagem, a coluna ereta e os polegares opositores. O som era belíssimo, beleza quase kantiana, que não é própria do objeto, mas nascida da relação de prazer entre este e o sujeito: um acometimento fora da espera. Jamais pudera imaginar que sentença tão simples fosse um dia causar-lhe a emoção que agora experimentava. Quanta carga de sentido naquelas sete palavrinhas balbuciadas. Depois do êxtase a que lhe levou a audição bem-vinda, apoderou-se do prisioneiro o temor mais temível, pois que não há medo pior do que aquele que nos acomete imediatamente após o contentamento. Se era pergunta o que lhe fizera a sombra... Era preciso responder.



“São as mesmas palavras nos levando a outras emoções ou novos blocos de acometimentos, de desterritorializações, de imprecisões sedutoras e/ou assustadoras”

“Para Kant o Sublime é de alguma forma ligado ao belo, por nascer do juízo de reflexão e por trazer certo prazer e agrado por si mesmo. Entretanto, o Sublime (...) diz respeito àquilo que é disforme, ilimitado, desproporcional, em determinada medida assustador, impressionante, que causa o que Kant chama de prazer negativo”

Mas como? Se não sabia, se não podia, se não era digno de palavra? Depois de anos no escuro dos vocábulos, falaria. E decidiu: ergueria sua condição da imundície, apesar do corpo dormente. Não era preciso levantar-se sobre as pernas para demonstrar altivez de espírito, de humanidade: arfou, arfou, sacudiu-se não sem dor, torceu-se nos grilhões, desesperado com a constatação tão óbvia, especial: era preciso responder.


“H....” - guturais.

“Rr...rro...” – um canivete decepando a cabeça das costuras mofadas.

“Ro..xosss” – finalmente.

Estrondou-lhe nos ouvidos, era um leão rugindo ao meio-dia, rompendo a sesta da savana. Era uma macumba brandindo num terreiro, sacudindo das tumbas os velhos negros: os tambores lhe tocaram nos pulmões e a multidão lhe subiu pela traquéia, batucou as cordas vocais e explodiu pela boca.


“Roxos dedos tenho!” - Bendito seja Oxum lhe desdobrara a língua.
“Um fenômeno indescritível de redescoberta de algo de que pensávamos que já éramos tão íntimos nos devolve uma sensação física de refundar as palavras em nossas próprias emoções. Algo físico dos sentidos desvelados espalha-se em nossos corpos criando uma consistência imprecisa, mas plenamente presente”

E era tão bela sua voz. Larga, grossa, como a do avô, o velho negro da carapinha prateada e das mãos de marceneiro, olorosas de Carvalho. A palavra, àquela hora música, espontaneamente como se a filha musa andasse mesmo braços dados com a mãe, trouxe-lhe a memória. E recordou o avô.



“As palavras seguem sua história, passadas através de gerações que as recebem como herança de sentidos”

Negro marceneiro, trazia os dedos firmes naquele movimento preciso de poda e investida que era o entalhe, um enleio, uma dança com a mulher amada. Corria a canhota muito segura no centro do cabo, descia leve, raspando as farpas do rosto, e relaxava o punho no manejo da ponta, cavando as rugas de um olho na madeira grossa. “O trivial, meu filho, se faz com o peso da mão, mas o segredo de usar a ponta está na falta da rudeza.” Era santeiro, o velho, mas rezava a reza dos negros, e assim lho catequizara às avessas, não sem santidade: São Jorge era Ogum ou Oxossi; Maria, Yemanjá. Era analfabeto e sábio. O mais sábio deles, pois que era ignorante. No início daquelas escuridões da prisão, passado o grito, o esperneio, a revolta, a reivindicação... ao lhe cair o silêncio da palavra, o encarcerado recordou o que aprendera: bem como no entalhe do Carvalho, a rudeza do grilhão exigia leveza de espírito. E com completa mansidão entalhou seus dias, cavoucados no chão imundo do calabouço. Por certo, não saberia dizer quando a lucidez lhe disse adeus, o que se fez em qualquer daqueles nasceres do sol tão iguais. Não demorou, entretanto: logo a solidão das coisas foi seu inquilino e, então, não soube mais. Simplesmente, assim naturalmente, alcançou o estado do não saber: a solidão faminta lhe comeu as palavras e com elas o som das palavras e com ele as lembranças e com elas a sensação de ser gente. Era um fardo, saco de açúcar, a contrair-se vez em quando. Por aqueles dias difíceis de outrora, fugia do fio de sol. Perceber-se para quê.


Mas quando a fala retumbou do outro lado da parede... Revolução, Estupor. Aquela voz era o belo e o sublime, eram as forças da natureza, um vulcão, um trovão, a limpar-lhe a pasta esbranquiçada dos olhos: havia outro e se havia, não era só. E era. Existia, pois que outro de sua espécie lhe garantia isso (na verdade, pouco importava que fosse mesmo da mesma espécie). E quando a palavra brandiu novamente, fez vir de mãos dadas seus antigos moradores: cor, som, memória. Voltou a dar nomes e o delgado voltou a ser fósforo. Sentiu-se Adão, a ele recomendado o ofício de batizar os bichos. Cela, dedo, parede, algema. Sabia os nomes e os dizia, repetindo sem parar. Deixava-se afetar por tudo, que novamente exalava cheiro e cor. Voltou a erguer-se feito planta à procura do fio de sol. E lembrou que nunca fora bom santeiro, uns olhos tão tortos, detalhes tão mal cavados, mas que fizera santos no chão imundo, cavoucando vincos de rosto na areia; que teve os pulsos apertados de rudeza nos dias triviais, mas fora profissional no manejar da ponta da afiada solidão. Agora nada dela mais.



“Logo nem o Belo nem o Sublime kantiano parecem lidar com o acometimento estranho de contemplação do mundo que nos toma de estupor. O estranhamento atraente e sem nome, que nos provoca êxtase, tristeza, revolta... Ou nenhuma dessas coisas, ou todas elas”

“Afecção é algo físico, não é algo da ordem do sentimento, ou seja, do afeto, mas um estar disponível aos outros modos da manifestação da substancia que lhe criam imagens ou marcas no corpo, ou marcas nos sentidos. Um modo existente define-se por seu poder de ser afetado”

“Os tenho... negros... negros hoje. Tenho... medo.” – numa tarde.

“Meus anelares... continuam arr... arroxeadoss...”

Era mulher. Ah, quanta dor não lhe causava voz feminina tão bonita apresentar-se assim sufocada. Esteve certo de que lhe tinham prendido pelo pescoço, que devia estar fino qual o fósforo. Triste. Agora sentia dor pelo outro e era feliz por isso, pois que a compaixão tornava-o ainda mais humano, e arfou um tanto mais para saber o nome dela. Recebeu silêncio. “Amanhã, amanhã.” – pensou, amanhã perguntaria. E, de novo, contou os dias. Fizeram-se novamente as horas.


Mas antes que o fio de sol amanhecesse, um tombo surdo.

Bumbo. Do outro lado.

E estranhamente a sombra alongada, vertical, fez-se horizonte. A sombra era prostrada agora, inclinada, o pescoço aparentemente pendendo.

“S..seu.. nom... nome?”

“Sss...seu nome? Diga?”

Entendeu depois que a solidão retornara, desta vez vestida de eterno. Não seria inquilino dele, contudo, mas da Palavra. Sim, esse era o nome da sombra agora inerte na outra cela: Palavra. Ele a batizou antes de entristecer-se de sequer poder encontrá-la para fechar-lhe os olhos. E quando voltou a catar o delgado no chão imundo não sentiu mais a vergonha de ter dedos inchados, que não agarravam com firmeza a madeira; não sentiu os dedos; não se perguntou se os beiços que sopravam o palito pareciam com aqueles tão bem feitos, concentrados, do avô, ao expulsar a serragem dos colos das Virgens. Despiu-se de afecções, de vertigens, de intensidade e experimentação. E Depois da indiferença inaugurar-lhe a nova condição, veio a velha moradora reatar suas costuras seculares dos lábios com pêlos sebentos de animal. E a solidão acabou-lhe a Palavra e a palavra. Não mais o Belo, não mais o sublime. Os outros inquilinos sequer disseram adeus: cores, cheiros, sabores, música e memória. Foram-se no sono eterno da sombra, ali deitada.

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