Venho aqui e vou embora, trazida por uma inspiração soluçada. Leio, trabalho, dirijo, converso e pronto: apareço, escrevo umas linhas. Apareça também, sempre, quando em vez, assim como eu. E seja bem-vindo.

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Aos Maciel, sobre cães e amigos.

À família Maciel,


Tobias e Mel estão lá fora, ao quintal. Quando abri o portão, ele corria feito um louco enquanto ela procurava uma cadeira para subir. Ela sempre faz isso, é pequena demais e o Tobias não me deixa falar com ela no chão, coitadinha precisa subir em algo para se livrar dos ciúmes do gordo. Estão ambos, contudo, seguros e saudáveis, aparentemente. Nunca sabemos quando chega a hora, a vida não nos prepara para isto. E, no fim, temos sempre a impressão de que estavam tão bem, quando de repente... Eu sinto muito. Sinto pelas palavras de conforto que mal saíram da minha boca ontem. Em tempos de perda, as palavras se calam mesmo, e o que vale, creio, são os ombros, as mãos, os olhos chorosos. Estes estavam lá.



No quintal em que estão Tobias e Mel, esteve um outro, calmo, em sua elegância silenciosa de um ancião guardião. Nesta casa, a saltar sobre os sofás, esteve outro ainda, a se arrumar entre os bancos do carro, que não é mais o mesmo, mas guarda a presença confortante do companheirinho negro das idas à ladeira. Maradona, Sting, Mike, Spayk... estão todos nas memórias boas e más, recentes ou distantes, muito claras ou quase esquecidas. Estão aqui.


Do Maradona lembro do pelo amendoado e dos dentes tortos. Não era um cão bonito, confesso. Era arredio e foi-se muito cedo. Meu pai deu-o a alguém. Eu era muito pequena, não recordo, mas talvez por isso, por sermos eu e Gabi muito novas, ele não tenha querido um cachorro arredio e de temperamento difícil convivendo conosco.


Não sei, contudo, quem veio primeiro, o Sting ou o Maradona. A ordem nem importa tanto.


Sting será sempre o mais gentleman de todos, o mais bonito e educado. Era um dálmata original. Filhote com "pedigree". Jamais saltava sobre nós quando estávamos deitados ao chão na hora da novela, ficava ali paradinho, esperando, até que lhe déssemos passagem. Certo dia de vacinas, o homem responsável não passou em nossa casa, acertaram de conseguir o medicamento depois, próxima semana aplicariam.


Não deu tempo.


Sting adoeceu de Pavovirose e se foi em questão de semanas. Eu recordo fatalmente a poça de sangue no chão da sala e os nossos pais a tentar desesperados convencer-nos de que aquilo era suco de beterraba que ele havia tomado e deixado o xixi assim... coisa de pais. Recordo perfeitamente o cheiro de sangue lavado que impregnou a sala por dias. Estávamos todos na loja da mãe quando nos disseram. Tocava uma música no rádio quando soubemos. Por isso detesto Raça Negra. Agora penso que nos levaram à loja da mãe por que já sabiam.


Eu não sei como foi. Sempre achei que tivesse sido uma morte natural, mas hoje eu não sei mais. Não tenho coragem de perguntar também. Que esteja em paz.


A morte de Sting fora tão dura que, por muito tempo, não aceitamos cães em nossa casa. Até que, numa tarde, brincávamos na varanda em frente ao portão quando a vizinha Maria apareceu. Tinha algo nas mãos. Seria uma trouxa suja, um saquinho pequeno de lixo? Não, era um filhotinho, muito muito pequeno, magro e sujo. Parecia mesmo um rato branco. Perguntou se o queríamos, era o mais novo da ninhada e, achava, não sobreviveria. Levamos pra dentro. Lembro de rabiscar seu nome numa folha de papel, tentando decifrar como se escrevia mesmo Spike. Ficou "Spayk". O ratinho branco cresceu e se tornou um grande e forte cão peludo, de mãe maltês e pai vira-lata. Ficava tão alvo quando banhávamos que se via de longe aquele pelo brilhante e couro rosado, o rabo flocado, belíssimo. Spayk mudou de casa conosco.


Era valente, contudo. Não com os de casa. Essa valentia rendeu-nos as histórias mais fortes sobre cães que podemos contar: amigos desavisados que entraram no quintal e tiveram a mão perfurada, os pés e canelas rasgados; outros que correram a casa toda, jogando cadeiras sobre ele; o pedreiro que estava reformando o quintal quando Spayk soltou-se da coleira e, para salvar-se, bateu-lhe no focinho com a pá de cimento. Coitado do Spayk ficou com a marca da pá, mas quem mandou ser daquele jeito?! Quando abriam o portão, nada o detia. Foram muitas situações. Descobrimos com o tempo que, se o soltássemos todos os dias, cedo muito cedo da manhã, ele ficava mais calmo. Dava seus passeios e voltava pra casa, religiosamente. A única coisa que não podiamos fazer era sair à rua enquanto estivesse passeando, pois, se nos visse, qualquer um de casa, Spayk atacava a pessoa que estivesse mais próxima a nós. Seu senso de proteção era mesmo absurdo.


Envelheceu. Um cão exemplar. Cerca de 15 anos conosco. Nunca adoeceu seriamente, nunca teve grandes problemas com pulgas ou carrapatos, nunca cheirou mal. O quintal será sempre dele. Depois de bons anos, ficou cego e vários nódulos começaram a se alojar. Numa manhã, muito cedo, o pai pegou a câmera, fez várias fotos... e o levou. Não consigo mais.... falar sobre isso.


Compreendi que, com todos aqueles problemas, Spayk representava mesmo um risco convivendo com dois filhotes tão novinhos (Mel e Tobias haviam acabado de chegar) e que tinhamos medo de perder, ao invés de um, três cachorros de uma vez só. Mas o quintal será sempre dele. Sempre do gentil Spayk, um guardião forte e fiel.


Muito difícil escrever isso.


Mike fora um presente de aniversário. Um presente para minha mãe que sempre quisera ter um poodle. Não lembro, mas creio que pagamos por ele. Mike fora a perda mais cruel e a história mais dolorosa de cães que passaram por esta casa. Trouxe-nos boas alegrias, mas sofrimentos também, aos montes. Fora acostumado, como seu pai, a andar nas ruas sem coleira. Seguia nosso comando perfeitamente, era fantástico andar com um cachorro pra todo lugar sem precisar prendê-lo e as pessoas se impressionavam. Fora o nosso grande erro, no entanto. Mike conheceu o mundo, andou de carro, foi à praia, pulou na piscina em tempos de Copa do Mundo... esteve por perto sempre. Aos dois anos de idade, descobrimos, no entanto, que Mike, assim como boa parte dos poodles gerados de misturas de números, tinha epilepsia e outros problemas no sistema nervoso central. Diagnosticaram Cinomose. Descobrimos do pior jeito. Debatia-se, depois ficava muito nervoso e atacava quem visse por perto. Ficou pior. Chegou a perder todos os movimentos. Mexia apenas os olhos, olhava-nos, olhava-nos, dizia tantas coisas com aqueles olhos. Ficou dias numa caixinha, paralisado. À noite, nos revesávamos, pois o danado queria passear! Aí punhamos ele nas quatro patas, segurando-o pela cintura e caminhávamos com ele, feito uma criança brincando com um carrinho sem rodas. Recuperou-se, no entanto, foi muito guerreiro o baixinho. Tomou uma série de vacinas com Dexacitaneurim e curou-se. Só que, saudável, passou a sair sempre que via uma porta aberta. Fugia para a casa da cadela com que havia cruzado e logo ficou conhecido como o boêmio de Maranguape! Foi engraçado, divertia-nos as escapadas dele, ainda que tivéssemos que procurá-lo depois. Um dia se foi. Fugiu e não voltou mais.


Passei quase 20 dias sonhando com ele, que voltava, como havia feito da outra vez. Mas Mike não voltou.


Cachorros não vêm e vão. Vêm e ficam. Ficam aqui, nas lembranças, na casa. São por vezes melhores companheiros que muitos humanos por aí. Importante é guardá-las, as memórias todas, e não ter o coração fechado para receber outros muitos cãezinhos que possam vir, por que qualquer amor dado a um animal que seja, creio, há de ser recompensado.


Meus pêsames pelo bom Venon, que ele esteja num lugar maravilhoso, com espaço o bastante para correr, latir e enterrar os ossinhos do almoço. Que ele encontre com Sting, Spayk e Mike por aí e diga que temos saudades.


Acho que é só, eu... não consigo mais escrever.

1 comentários:

Gabi disse...

Ai mayara, vc quase me matou. Confesso que nunca fui muito apaixonada por animais, mas é impossivel não se envolver e não ter afeto e carinho por esses bichinhos. Esse texto me fez lembrar tantas coisas, tantos momentos que vivemos com essas criaturinhas, principalmente o Spayk que era o mais afetuoso.Vc me emocionou e o mário olhou pra mim sem entender nada. kkkkk!!!!!!Te amo nega!!!!!!!!!

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