Venho aqui e vou embora, trazida por uma inspiração soluçada. Leio, trabalho, dirijo, converso e pronto: apareço, escrevo umas linhas. Apareça também, sempre, quando em vez, assim como eu. E seja bem-vindo.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

O Cartão de Crédito ou A Frase-câncer de Otto Lara Resende





[caption id="attachment_316" align="aligncenter" width="300" caption="Por que aqui eu "quebro" a cobra e mostro o pau"][/caption]




Quebrei meu cartão de crédito. Digamos que Nelson Rodrigues ajudou na decisão. Quem leu Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária vai entender. A peça teatral fala sobre tentações, sobre as oportunidades que temos de ser bons ou maus e as decisões que tomamos diante delas. Fala ainda de corrupção e de sem-vergonhice, lógico, senão não seria Nelson Rodrigues.


Diversas atitudes dos personagens ao longo de toda a peça são baseadas em uma frase do escritor Otto Lara Resende que diz: “o mineiro só é solidário no câncer”. Edgard, o protagonista, é quem cita a frase, logo no inicio do primeiro ato. Bêbado, procura explicá-la:





Edgard – O Otto é de arder! É de lascar! E o Otto disse uma que eu considero o fino! O fino! Disse. Ouve essa que é. Disse: “O mineiro só é solidário no câncer.” Que tal?


Peixoto (repetindo) – “O mineiro só é solidário no câncer.” Uma piada.


Edgard (inflamado) – Aí é que está: – não é piada. Escuta, dr. Peixoto, a principio eu também achei graça. Ri. Mas depois veio a reação. Aquilo ficou dentro de mim. E eu não penso noutra coisa. Palavra de honra!


Peixoto – Uma frase!


Edgard – Mas uma frase que se enfiou em mim. Que está me comendo por dentro. Uma frase roedora. E o que há por trás? Sim, por trás da frase? O mineiro só é solidário no câncer. Mas olha a sutileza. Não é bem o mineiro. Ou não é só o mineiro. É o homem, o ser humano. Eu, o senhor ou qualquer um só é solidário no câncer. Compreendeu?


Peixoto – E daí?


Edgard – Daí eu posso ser um mau-caráter. E pra que pudores ou escrúpulos se o homem só é solidário no câncer? A frase do Otto mudou a minha vida. Quero subir, sim. Quero vencer.






O mineiro somos todos nós. Solidários, bonzinhos e honestos apenas na fase terminal, na última hora, quando não tem mais jeito. A sensação que tive esses dias foi um tanto esta. Às vezes nos tornamos reféns de cada coisa, inclusive dessas frases. O mineiro só é solidário no câncer.


- Vou gastar, vou fazer o que der na telha, vou torrar tudo sem prioridades por que, quer saber: o mineiro, meu amigo, só é solidário no câncer!


Eu vejo esse espírito de porco rondando o nosso cotidiano. Na política imunda, no trânsito assassino; na fila que furamos, na nota de 100 falsa que recebemos e passamos pra frente, até no lixo que jogamos na rua. Vejo no jeitinho brasileiro, na esperteza canalha.


Vi na TV essa semana, em Pedra Branca. Uma cidade inteira sitiada, feita refém de 15 bandidos, já intitulados pela imprensa como “os novos cangaceiros”. Dane-se tudo – pensaram os assaltantes – a tranquilidade dos moradores, seus empregos, seus lucros; o dinheiro e a saúde dos aposentados, por que o mineiro, rapaz, só é solidário no câncer.





Peixoto – Bem. Uma curiosidade: – O que é que você faria, o quê, pra ficar rico? Cheio do burro? Milionário?


Edgard – Eu faria tudo! Tudo! Com a frase do Otto no bolso, não tenho bandeira. E, de mais a mais, sou filho de um homem. Vou lhe contar. Quando meu pai morreu tiveram de fazer uma subscrição, vaquinha, para o enterro. Os vizinhos se cotizaram. Comigo é fogo. A frase do Otto me ensinou. Agora quero um caixão com aquele vidro, como o do Getúlio. E enterro de penacho, mausoléu, o diabo. Não sou defunto de cova rasa!


Peixoto – Isso mesmo. O Otto Lara é que está com a razão.




Mas Edgard mete-se em uma proposta cabreira: recebe um cheque de cinco milhões de cruzeiros para se casar com uma moça “desonrada”. Recebe do pai dela, um crápula, cujo hobby é justamente desvirginar as filhas alheias. O protagonista visita uma das festas do futuro sogro e se enoja: do velho, de si, e de a frase do Otto comandar toda aquela orgia escrota. Compreendendo o espírito da frase, Edgard conclui que, se não queimar o cheque, a ideologia Otto Lara o consumirá. Está doente, desesperado, numa batalha ética, caricatura do que, na verdade, vivemos todos os dias.





Edgard (no seu desprezo) – É a frase do Otto. Tudo é a frase do Otto. Se o cara te violentou. Se eu não rasgo o cheque. (puxa o cheque) Está aqui e não rasgo. Por causa da frase do Otto.


Ritinha (sem entender e desesperada) – Eu gosto de você! Gosto, Edgard!


Edgard – Ritinha. A frase do Otto é mais importante do que Os Sertões do Euclides da Cunha.


Ritinha – De quem?


Edgard – Euclides da Cunha. O escritor.


Ritinha (na sua inocência e doçura) – Erico Veríssimo também é bom!


Edgard (irritadíssimo) – Estou falando de. Ora bolas!


(Ritinha apanha a mão de Edgard)


Ritinha – Você está com febre? Está, sim. Quente!


Edgard (realmente febril) – Ritinha! A frase do Otto. Está ouvindo? A frase do Otto é mais importante que todo o Machado de Assis!


Ritinha (sôfrega) – Você está exaltado!


Edgard (ofegante) – Não sei mais nada!


(...)


Edgard (agarrando a pequena pelos braços) – Ritinha, a frase do Otto é que é o câncer!




Vi a frase-câncer na minha cara, minha testa, ao abrir minha fatura esses dias. Dívida, dívida, dívida, e o bendito cartão brilhante retumbando na carteira, dizendo “Compre, relaxe, não ligue, a gente paga pra você!”, enquanto a gente pensa, pensa mesmo: “Quer saber, a gente trabalha tanto e não pode nem fazer uma extravaganciazinha? Danem-se as prioridades, danem-se as economias: o mineiro só é solidário no câncer!”


Mas a vejo pulsando mesmo nos juros de mora, nas anuidades, nas dezenas de minutos gastos até que se consiga falar com uma atendente desses cartões, na palhaçada que é adotar essas empresas como nossos agiotas particulares.


Decidi. Igual o Edgard quando mandou fogo no cheque.


Sábado à noite, depois de abrir a fatura, quebrei o cartão em quatro partes, enquanto parafraseava o Edgard:


- Está morrendo! Morreu! A frase do Otto!

Tal qual o protagonista, sinto-me estranhamente livre.

Chega da ilusão que precede a dívida. De agora em diante, serei mais solidária comigo.

2 comentários:

Jana disse...

ri.

só isso.

mas vou rir mais quando te vir sem esse cartão querendo porque querendo aquela extravaganciazinha.

entendo, veja bem, entendo o que você fez. e faria o mesmo no seu lugar, mas somos humanos demasiado humanos pra que eu não anteveja a sua carinha de cachorro abandonado diante daquele livrinho do mestrado.

Mayara Carol Araujo disse...

Já disse que odeio quando você está certa?
- Odeio quando você está certa.

Não é o fim do mundo, Jana. A questão é que trabalho e ganho relativamente bem, n deveria ficar me iludindo com um cartão, quando posso me programar pra comprar à vista, saca?

Estou querendo pensar assim o mais que puder.
Estou querendo!

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