Venho aqui e vou embora, trazida por uma inspiração soluçada. Leio, trabalho, dirijo, converso e pronto: apareço, escrevo umas linhas. Apareça também, sempre, quando em vez, assim como eu. E seja bem-vindo.

sexta-feira, setembro 04, 2009

A Nuvem

Esses dias, percebi que temos habitado uma nuvem. Não, isso não é romântico, nem lírico, nem futurista. E não é só mais uma crônica auto-ajuda – ainda que possa terminar assim. É sério e trágico. Moramos numa penumbra de poeira. Não é pó, ralo e passageiro, é poeira densa, insalubre e perene. Antes de ontem, pela manhã, nos buracos da estrada, a nuvem alcançava a borda inferior janela do ônibus, cobria os carros menores e, das pick-ups, deixava ver o teto.
À noite, com a multidão na romaria tensa do regresso para casa, a nuvem cobriu minha janela. Do vidro, identifiquei uns luzeiros: Palios, Gols, Unos, imersos na buraqueira turva. Os potenciais passageiros dos ônibus se arriscavam tateando vacilantes a porta do transporte, enquanto pares de faróis procuravam não encontrar pares de pernas vacilantes. A poeira se estende enquanto perduram os carros.  Não há tempo de decantar. Não que os grãos emersos não tentem. Mas a cada novo carro, nova excitação, de modo que a nuvem gorda se movimenta, inflando e murchando, inflando e murchando, numa cena patética. Patética a nuvem. Patéticos os carros, os ônibus, os caminhões, patéticos os seus motoristas que furam as estradas e erguem a poeira que – por Deus! – só quer decantar. Patéticos os fazedores de estradas que as fazem para ser poeira e não estrada. Andei pensando se não somos tal qual essa poeira vulnerável, que se excita trêmula a cada coisa que passa. Não dá tempo de decantar. Juntos, os motoristas, passageiros e fazedores de estradas formam também, a seu modo – a nosso modo – uma grande e débil nuvem gordurosa de pessoas na correria dos seus dias atarefadíssimos, ocupadíssimos, atrasadíssimos. Não há tempo para perceber o vento, o céu azul, a grama ou qualquer dessas coisas ordinárias que se reparam quando estamos quietos. Só há espaço para estar na confusão dos carros, formando essa maldita penumbra que resseca meus olhos recém-operados. Meu colírio acabou essa semana. Não sei como conseguir enxergar decentemente. Leio um João do Rio desfocado no ônibus enquanto penso. O que será ou serão o(s) colírio(s) da rotina, que lavaria(m) nossos olhos turvos do vício de não ter tempo.

1 comentários:

dhenis maciel disse...

muito bom. olhar inusitado e extremamente pertinente.

p.s.: ler no ônibus faz mal pra vista. pode deslocar (ou descolar) a retina.

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