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terça-feira, dezembro 09, 2008

Nada de Faz de Conta

Sobre a precariedade carcerária brasileira e, particularmente, cearense.

“O que seria tão feio para cavalo deve ser ainda pior para gente. Por que tornarem tão feios aqueles pobres prisioneiros? Isso não pode ajuda-los a melhorar... Tenho certeza de que, se me fechassem ali, mesmo sem ter feito nada de ruim, eu acabaria muito mau. Que será que a gente podia fazer para que eles sofressem menos?”
Tistu, o Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon

Era uma vez um menino que, tendo dificuldades de aprendizado na escola, foi levado a ter lições particulares com adultos que lhe ensinassem tudo quanto fosse necessário para sobreviver no mundo de gente grande. Uma das lições foi sobre ordem e, para tanto, levaram-lhe ao presídio da cidade. Era uma vez um escritor francês que, através da inocência de um menino, discutiu questões sociais como a situação carcerária, e, pela cabeça desse mesmo garotinho, propôs soluções de faz de conta que fazem bastante sentido. Estamos falando da metáfora de Maurice Druon transformada em livro: O Menino do Dedo Verde.
Ao visitar o presídio de sua cidade, Mirapólvora, Tistu, o garotinho, quase caiu doente de tristeza. As grades lhe desconfortavam e mais ainda as setas pontudas sobre elas. Lá as pessoas eram infelizes, viu Tistu e concluiu que elas não poderiam se reabilitar num lugar daqueles. Sr. Trovões, seu professor, por outro lado, dizia-lhe que, para manter a ordem, era preciso punir a desordem e colocar os homens maus em um lugar onde lhes fosse ensinado a não matar e não roubar. O menino até concordava com a lógica de punição da desordem, mas antes se sentia incomodado porque, para ele, ordem era outra coisa: ordem era quando estávamos contentes. Sim, pois que quando seu pônei estava bem alimentado, banhado e trazia a crina penteada, mantinha-se comportado e obediente, muito mais que se estivesse sujo de lama. Tistu não entendia como alguém poderia aprender algo de bom vestindo péssimas roupas e caminhando em círculos pelos pátios, infeliz e sem perspectiva.
Onde quis chegar Maurice Druon e onde queremos chegar agora? A conclusão infantil de Tistu, tão simples e tão evidente, parece complexa para certas mentes adultas nacionais, estaduais. O questionamento contido n’O Menino do Dedo Verde se aplica convenientemente à realidade presidial brasileira e, em particular, cearense, muito mais crua que o faz de conta.
Segundo dados do próprio Ministério da Justiça, no Brasil, são mais de 366 mil homens e mulheres encarcerados em somente 275 mil vagas, ou seja, mais de 91 mil brasileiros se amontoam em celas insalubres de presídios, na sua maioria, condenados pela Vigilância Sanitária. Só a massa carcerária do Estado de São Paulo (141.609) chega a superar o número absoluto de presos da França (56.279), da Alemanha (72.656), da Espanha (67.969) e de todo o Reino Unido (90.831). No Brasil, que segue o modelo norte-americano de cárcere, há regimes fechado, semi-aberto, aberto, provisório, internação ou tratamento... mas é difícil dizer qual o menos pior.
Cabem 21 numa cela para 13, à noite se revezam e só assim alguns tem o luxo de dormir deitados, essa é a realidade do presídio de Contagem, em Minas Gerais, que vergonhosamente se repete em tantos outros. Falta ventilação, saneamento, tratamento médico, estrutura predial e, se esses fossem todos os problemas dos cárceres nacionais, isso ainda seria menos preocupante. A revolta com a condição subumana a que são submetidos, o ócio e tantos outros fatores fazem das cadeias brasileiras verdadeiras universidades do crime. A violência é, por vezes, a única forma de ser ouvido ou de, ao menos, sobreviver. Assassinatos de presos são constantes, ora pelos próprios detentos, por rixa ou vingança, ora pelos agentes penitenciários ou por outros funcionários. Por castigo, o detento é, muitas vezes, posto em celas de rivais – logicamente, não dura muito tempo.
O acesso à droga e às diversas modalidades de crimes dá condições para que, em pouco tempo, o garoto, réu primário, preso por pequenos furtos, se torne um bem-sucedido homem do tráfico, ofício que levará consigo ao cumprir sua pena: mais um formado no curso profissionalizante do sistema carcerário brasileiro volta às ruas.
As mulheres são um infeliz capítulo a parte. A maioria das detentas, cerca de 70% delas, ao menos no Ceará, são ou eram companheiras de presidiários. Muitas vão parar na cadeia por terem tentado, por exemplo, levar drogas, celulares ou armas para seus parceiros, são as chamadas “mulas”, no idioma do cárcere. Elas servem de contrabandistas, de amantes e até de moedas de troca em casos de dívida: o sexo com o cobrador paga a conta. Detidas, vão para lugares tão insalubres quanto os dos homens, isso quando não são desumanamente condenadas à prostituição por tempo indeterminado: em 2007, mais de 6 casos de mulheres encarceradas com homens foram identificados. Em um deles, uma menina de 15 anos, L., acusada de tentativa de furto, permaneceu, durante cerca de 20 dias, presa com mais de 30 detentos, submetida a abusos sexuais, violência e estupros seguidos.
Quanto se gasta para manter tudo isso? Em torno de R$ 1.200 mensais por preso, enquanto um agente penitenciário recebe, em média, incluindo as possíveis gratificações, pouco mais de R$ 800,00. É também por isso que o agente se rende à máfia interna na tentativa de “ganhar por fora”: está instaurada a corrupção dos próprios “representantes da ordem”, mas não sem certa lógica, o agente penitenciário está tão ou mais sujeito aos perigos do cárcere quanto os presos e convive também naquele ambiente degradante, gozando um tanto de melhores condições, mas convive. Difícil não se indignar e não procurar meios de se beneficiar (ou até de sobreviver), ainda que ilegais. O agente admitir essa postura é, de certo modo, até explicável, mas e quando autoridades fazem isso? Diretores de presídios, oficiais de justiça, advogados agindo como verdadeiros entregadores de encomendas, isso sim é revoltante: se os agentes parecem não perceber que, ao fornecerem armamentos, celulares e drogas, colocam suas vidas e a de seus companheiros em risco, as tais autoridades fazem isso por que não trabalham lá e, portanto, não se importam com as conseqüências ou até se beneficiam com elas.
O Ceará não é muito diferente do cenário nacional: a massa carcerária cearense é a quinta maior do país. Todos os presídios e a maioria das colônias do Estado foram condenados pela Vigilância Sanitária. Nem mesmo as cadeias privadas – ditas como as grandes solucionadoras do caos penitenciário – foram aprovadas. No Instituto Penal Paulo Sarasate, as refeições dos detentos são servidas em sacos plásticos, como lavagens de porcos, porque suas vasilhas estavam sendo derretidas para fazer facas artesanais. Por sinal, sobre o IPPS, o líder do Sindicato dos Agentes Penitenciários do Estado à época, Augusto César Coutinho, declarou em entrevista que o presídio, o mais populoso do Ceará, estava à beira do desabamento. Essa denúncia completa um ano esse mês.
O que, de certa forma, difere a situação da segurança cearense de outros estados brasileiros é a política de segurança do Governo do Estado, baseada em um projeto que foi um dos responsáveis, senão o maior responsável, pela eleição do atual governador Cid Gomes: o programa Ronda do Quarteirão. Distribuir policiais bem fardados em carros equipados pelos quarteirões das cidades cearenses para prender criminosos não é má idéia, muito pelo contrário, a questão é: onde pôr os detidos? Nos grandes carros equipados? Por isso tão grandes e caros?
Até seria possível pensar em segurança pública sem priorizar a situação estrutural dos cárceres, mas isso só aconteceria se todo o sistema presidial brasileiro fosse repensado e essa sim é a grande medida a ser tomada. De nada adianta policiais nos quarteirões prendendo pessoas para simplesmente mergulhá-las num sistema falido e completamente anti-social, anti-educador, anti-reabilitador. Aliás, falar de reabilitação sequer é possível: como reabilitar, ressocializar uma pessoa que nunca foi socializada? É para esse questionamento que nos aponta o perfil dos detentos, não só do nosso estado, são, em geral, pessoas que nunca foram socializadas, incluídas, nunca tiveram seus direitos respeitados, nunca foram de fato legitimadas como cidadãs. Como falar de reabilitação, então? Moral da história: “o buraco é mais embaixo”. Falar de segurança pública hoje é falar de transformação profunda.
Mas se é preciso começar por algo, que, ao menos, se considere as disposições da própria lei, que diz que a execução penal deve efetivar a decisão criminal, mas proporcionando condições para a harmônica integração social do condenado e assegurando todos os seus direitos não atingidos pela sentença, ou seja, o mínimo, o tão simples e tão evidente que mesmo o Tistu de Maurice Druon foi capaz de perceber, não é percebido: o indivíduo que recebe uma sentença não deixa de ser indivíduo. Ele ainda é um cidadão ou uma cidadã, com direitos, deveres, desejos, vida. A lei diz ainda: não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política. E este é um dos parágrafos únicos da legislação mais difíceis de se acreditar.
Se é preciso começar por algo, que se considere o respeito à vida e à vida digna e, visando isso, que se repense porque a punição por meio do encarceramento? Qual a lógica de exilar? É mesmo somente expulsar o “fora da lei”, retirar o homem mau da sociedade ordenada? É só ostracismo, marginalização, ou existe algo mais? Marginalização, diga-se de passagem, a sociedade já oferece. Atualmente alguns projetos até implantados com o apoio do Ministério da Justiça buscam compreender o presídio como um lugar de aprendizado, de profissionalização, com a implantação de cursos e de comunidades agrícolas, mas essas iniciativas ainda são poucas. É preciso combater a escola do crime com outras escolas. E, sobretudo, vislumbrar essa outra etapa do processo prisional, tão esquecida e ao mesmo tempo tão necessária: a volta para casa, a volta para a sociedade.
Tistu, com seu dedo verde, soluciona, em partes, o problema carcerário de Mirapólvora fazendo do presídio um enorme jardim. Os presos sentiram como se vivessem em uma casa como qualquer outra e ficaram tão contentes que até os que pensavam em fugir desistiram. O pequeno jardineiro Tistu faz nascer tantos jardins que o prefeito muda o nome da cidade, de Mirapólvora para Miraflores. Pode parecer bobagem de história infantil, mas a essência do que Maurice Druon quis dizer tem lógica. Ordem só se alcança primando o respeito e buscando qualidade de vida para todos, ainda que isso se exprima em um tratamento digno, num lugar digno, com uma roupa digna e trabalhando dignamente, enquanto se paga por um erro que se cometeu.
Em entrevista ao jornal A Notícia, de 25 de fevereiro de 2001, o então deputado federal e presidente da Comissão de Direitos Humanos na Câmara Federal, Marcos Rolim afirmou que “ao invés de erguer prisões, nosso desafio consiste, precisamente, em esvaziá-las”. De fato, enquanto os portões das penitenciárias forem trancados sem a perspectiva racional de serem abertos, pensar em segurança com respeito e dignidade, isso sim, será um faz de conta.

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